por be.Living
No mês de novembro, celebramos o Dia da Consciência Negra, momento em que todos somos convidados a refletir sobre este assunto tão essencial para a evolução da nossa sociedade. Conversamos com nossa coordenadora do Ensino Fundamental, Gabriela Fernandes, que explicou como a temática antirracista permeia o currículo e as práticas educativas propostas pela be.Living. Confira a entrevista:
b.L: Por que o Dia da Consciência Negra é importante para o calendário escolar?
Gabriela Fernandes: A importância da data em si já é um trabalho de conscientização e de antirracismo. Se pararmos para pensar, é um absurdo que tenhamos que ter uma data para conseguir trabalhar o imaginário das pessoas sobre a importância de nos indignarmos, lutarmos e transformarmos uma sociedade tão racista como a nossa. É importante que esta data esteja não somente no calendário escolar, mas no calendário nacional, porque é urgente que as pessoas se conscientizem do absurdo que é o fato de que 56,4% da população brasileira, ou seja, uma comunidade imensa, sofra discriminação estrutural em seu dia a dia, em seus salários. Na be.Living não trabalhamos este assunto pontualmente em decorrência deste calendário. Nosso currículo escolar tem essa temática presente e em pauta ao longo de todo o ano. Nesta data específica – que é um dia que não estamos juntos com as crianças devido ao feriado – trazemos provocações a mais, para além do que já trazemos sempre, a serem trabalhadas anteriormente ou posteriormente ao Dia da Consciência Negra.
b.L: É possível perceber o racismo enraizado no contexto da educação?
Gabriela Fernandes: O racismo é estrutural na educação, ele está intrínseco à nossa sociedade. Conseguimos perceber o racismo na educação através do currículo, dos livros didáticos, da visão da história contada somente pelos olhos do colonizador. Se analisarmos a língua portuguesa e o vocabulário utilizado para identificar e validar os povos originários – por exemplo o uso de palavras como ‘selvagem’ e ‘tribos’ – o racismo fica muito evidente. Percebemos o racismo na educação pela forma como os temas são trazidos para as crianças. A nossa busca, enquanto escola, é trazer os temas e a história do Brasil e do mundo, contados a partir de diferentes pontos de vista, ampliando o olhar das crianças com as visões de todos os envolvidos. Este ano, Ailton Krenak foi o primeiro indígena eleito para a Academia Brasileira de Letras. A política de cotas, uma política de reparação histórica, começa a mudar o perfil da academia brasileira no momento em que fica evidente o aumento de estudantes negros na USP (Universidade de São Paulo). Mudanças estruturais como essas em nossa sociedade, evidenciam a necessidade de uma mudança no currículo escolar, validando a história de nosso povo e de nosso país a partir de outros pontos de vista. Quando nos dispomos a pesquisar, conseguimos entender a história de uma maneira muito mais ampla. O currículo que trabalhamos hoje no Ensino Fundamental da be.Living é antirracista. Já no Year 1, trazemos para as crianças o continente africano para que elas possam compreender a potência deste continente. Na minha época de escola, nós aprendíamos sobre a África a partir da visão estreita do colonizador e olhávamos para os negros no papel de escravizados, pessoas que apanhavam e mal reagiam. Quando, na verdade, a abolição da escravidão aconteceu no Brasil, em grande parte, devido à luta e à reação do povo negro.
b.L: De que formas a be.Living combate a perpetuação do racismo?
Gabriela Fernandes: A be.Living é uma escola que decidiu, já há muitos anos, que teria responsabilidade social em relação a isso. Acreditamos que só conseguimos fazer uma educação antirracista e combater a perpetuação do racismo se o currículo da escola for pensado neste sentido. Isso significa que todas as situações de ensino-aprendizagem terão o cuidado de ampliar a visão das crianças, buscando construir um olhar para uma sociedade com maior equidade. Não há nada que justifique, na história do mundo e da humanidade, que uma pessoa ganhe mais ou menos, ou que tenha mais ou menos acesso a oportunidades, devido à cor de sua pele. Entendemos que por sermos uma escola particular, em que a maior parte dos estudantes é branca, temos uma responsabilidade ainda maior no sentido de que as crianças vejam pessoas negras ocupando diversos lugares na sociedade, na ciência, na cultura brasileira e do mundo. Por isso, temos o cuidado de fazer escolhas em nosso currículo – desde como vamos trabalhar cada tema até quais leituras, personagens, pintores, cantores, escultores e autores vamos estudar – que possibilitem que as crianças enxerguem o povo negro no lugar de quem produz conhecimento.
b.L: Existe um trabalho de formação desenvolvido com a equipe de professores e funcionários da escola neste sentido?
Gabriela Fernandes: Sim. Quando decidimos fazer essa mudança no nosso currículo, nós compreendemos que precisaríamos primeiramente formar os professores. Não seria possível mudar o currículo da escola sem ter os professores juntos nessa mudança. Então, chamamos a pesquisadora e educadora Mafuane Oliveira, que na época era professora de Cultura Brasileira em nossa escola, para formar uma equipe em educação antirracista. Em 2019, realizamos uma formação, durante o ano todo, com toda a equipe pedagógica da escola, para que cada um pudesse se entender no mundo a partir deste prisma e entender a educação antirracista. Foi uma formação que reverberou muito no nosso currículo e na nossa forma de pensar. Teve um trabalho muito profundo realizado com a Mafuane, de olharmos para a forma como falamos, para ir eliminando esse vocabulário racista do nosso cotidiano. Depois desta formação, realizamos um congresso de professores, em que foram apresentados trabalhos desenvolvidos com essa nova perspectiva antirracista. Fizemos uma mudança significativa no currículo, escolhendo outros livros didáticos que representavam uma nova forma de olhar para esta questão. Depois, tornou-se um trabalho constante de currículo, planejamento e de processo formativo. Eu, como coordenadora pedagógica, estou olhando o tempo todo para isso. É um trabalho de dia a dia. Não é um trabalho pontual. Por isso, 20 de novembro não é uma data pontual. Se queremos mudar uma sociedade racista, temos que pensar todos os dias sobre isso. Precisamos questionar o fato de que em determinados lugares não há a presença de nenhuma pessoa negra. Até que venha uma indignação com relação a isso. Transformar a sociedade não é uma mudança que se faz no externo. É uma mudança que se faz, primeiro, internamente, e que só assim, quando você estiver muito incomodada com a situação, você consegue atuar para uma mudança. Tem uma pensadora chamada Grada Kilomba que foi uma das pessoas que mais me transformou. Ela fala que o antirracismo tem a ver com responsabilidade e que há 5 passos neste processo de responsabilização, para conseguir ser uma pessoa antirracista: percepção, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação.
b.L: Você pode explicar um pouco mais sobre o que vem a ser um currículo antirracista?
Gabriela Fernandes: O currículo antirracista implica em validar toda a produção de conhecimento tanto dos povos originários quanto dos povos negros que construíram este país. É uma educação que vai olhar para a história por todos os seus lados, considerando todas as visões, e que vai validar a produção artística, literária e científica de todas as pessoas envolvidas no processo. Por exemplo, quando trabalhamos as Revoltas que fizeram a História do Brasil, olhamos mais profundamente para as revoltas populares, não validando somente a ideia do colonizador ou do burguês, que está com o poder na mão. Mas olhando e validando o envolvimento de todo mundo que fez parte da história. É importante lembrarmos que existem duas leis no Brasil: a L10.639 e a L11.645 que tornam obrigatórios na escola os ensinos sobre História e Cultura africana, afro-brasileira e indígena. Nosso trabalho está ancorado nesta legislação.
b.L: Como a educação antirracista é colocada em prática e vivenciada, no dia a dia da escola?
Gabriela Fernandes: As práticas são muitas, vou dar alguns exemplos. O primeiro ano tem o projeto Sankofa. Sankofa é um ideograma africano que significa “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”. Este projeto que olha para a África e para a potência do povo negro, é extenso e acontece o ano todo. As crianças realizam saída pedagógica para o Museu Afro Brasil e olham para tudo o que o povo africano trouxe para o Brasil e para nós, brasileiros. O segundo ano faz um trabalho de modos de vida em diferentes tempos, olhando para a constituição da cidade de São Paulo e para a força deste povo na construção desta cidade. Faz parte deste projeto, pesquisar onde elas moram, quanto tempo demoram para chegar de casa até a escola, porque elas estão olhando para o funcionamento da cidade. Neste momento, nós propomos que elas realizem uma entrevista com várias pessoas da escola. E as crianças começam a perceber que a maior parte da gestão e dos professores não mora tão distante da escola, enquanto que as pessoas que realizam a limpeza da escola, por outro lado, moram mais distante. São problematizações reais do dia a dia sendo vistas pelas próprias crianças, para que elas tenham uma consciência de que existe uma vida diferente daquelas que elas estão acostumadas a levar.
b.L: Quais são os maiores desafios enfrentados em trabalhos como este, que implicam mudança de pensamentos tão antigos e arraigados?
Gabriela Fernandes: O maior desafio somos nós, pessoas. É formar pessoas, inspirar para que elas se enfrentem e estejam dispostas a trazer isso tudo para a consciência. Porque o trabalho antirracista é, no fundo, um trabalho de autoconhecimento, que exige uma disposição para olhar para as questões mais doloridas da nossa sociedade e, a partir daí, do momento em que a gente se conscientiza, tem a ação e a manutenção diária. É alcançar essa compreensão de que não é algo para alguém ver. É todo dia e toda hora.
b.L: Já é possível testemunhar conquistas neste sentido?
Gabriela Fernandes: A maior conquista possível de testemunharmos é o nosso currículo. Temos um currículo antirracista muito consolidado. As crianças começam no Year 1 com o projeto Sankolfa e terminam no Year 5 realizando um trabalho imenso sobre os Direitos Civis, pautado em toda a luta do povo negro dos Estados Unidos. A grande conquista é olhar para o nosso currículo e ver o quanto ele foi efetivo, o quanto nós já conseguimos transformar e o quanto ele reverbera com essas questões. As crianças ainda são muito pequenas para que seja possível ver na ação delas uma grande mudança. Trabalhamos com a infância, na ideia de que estamos semeando uma nova concepção de relações e de país. Faz parte da aprendizagem humana darmos as mãos uns para os outros, e darmos passagem para todos os povos, com equidade, respeito e gratidão.